OS VÍNCULOS SAGRADOS DO TRABALHO E A CORRELAÇÃO COM A DIGNIDADE HUMANA.
Como bem salienta a canção de Beto Guedes, “tudo que move é sagrado”. Sendo assim, exorta o músico: o fruto do trabalho é mais que sagrado, seja porque move o mundo seja porque altera aquele que transforma positivamente o ambiente no qual habita. Mas, quais são os vínculos históricos, mitológicos e ajuizamentos que possibilitam tal afirmação acerca desse conjunto de atividades produtivas e/ou criativas que o humano executa, modificando matérias ou substâncias, alterando dessas a natureza e a forma para atingir determinada finalidade?
Diante dessa questão, e ao se retomar os primórdios da constituição do pensamento mítico ocidental, é impossível não considerar a mitologia grega com seus deuses antropomórficos exercendo poderes além do cume do Monte Olimpo. Fato é que dentre o panteão das divindades gregas é possível se deparar com o mito de Hefesto, ou Vulcano no equivalente da mitologia romana. Reza a lenda que a deidade se apresenta como o deus da tecnologia e de modo enfático reverencia o saber fazer: a técnica por detrás das criações.
O deus, símbolo do trabalho, carrega como emblemas o machado, a bigorna, o martelo e a tenaz – instrumentos hábeis em auxiliar também o Homo deus na transformação do orbe. Isso porque, sendo o soberano do fogo e dos metais, inventor, construtor e artesão do Monte Olimpo, todo o trabalho realizado por Hefesto acontecia nos vulcões sempre com o auxílio (partilha e constituição de um saber que se estrutura socialmente) de ciclopes ctônicos: gigantes imortais que possuíam apenas um olho.

Diz a lenda que em seu ateliê, ele forjou diversos objetos e equipamentos mágicos magníficos utilizados por ele e por todos os deuses do panteão grego. Dentre esses instrumentos sem equivalentes é possível citar os raios e o escudo de Zeus (Égide), a cinta de Afrodite, o elmo alado e as sandálias de Hermes, o tridente de Poseidon, a carruagem de Hermes, as flechas de Apolo e o arco e flecha de Eros.
Por ter sido lançado do Olimpo ainda em tenra idade, ele desenvolveu sua expertise em meio a mortais e retorna ao Olimpo pelo reconhecimento dos deuses do valor de seu trabalho, tendo a oportunidade de criar aparatos tecnológicos singulares não só para o deuses como também para “semideuses” como Aquiles (herói grego protagonista da Ilíada de Homero, que também participou da Guerra de Tróia) para quem produziu uma armadura e Agamenon (herói que supostamente comandou o épico cerco dos Aqueus à cidade de Tróia) para o qual criou um cetro igualmente especial.
O deus decaído também se beneficia de suas criações. Para si criou, dentre tantos objetos exemplares, uma carruagem e uma rede de fios transparentes irrompível com a qual enlaçou sua esposa adúltera Afrodite (deusa do amor, da beleza, da fertilidade e do desejo) e o amante dela: Ares (deus olímpico da guerra). Fato que denota como o trabalho é capaz de beneficiar não somente aos outros como a si mesmo.
Não bastasse esses aparatos “tecnológicos” de última geração, Hefesto em sua forja construiu, não apenas todos os tronos do Palácio do Olimpo, como diversos autômatos de metal: mecanismos que funcionam de modo automático, por vezes imitando movimentos humanos, mas que operam cumprindo ordens sem questionamento. Um exemplo dessa criação é o tripé posicionado na Terra com capacidade de ir e voltar ao monte Olimpo, apontando como o trabalho empreendido com esmero pode romper mundo e alastrar-se por paragens impensadas e atingir objetivos extramuros.
Transpassado por uma história de sofrimento e humilhação, Hefesto se superava e surpreendia a todos com as coisas extraordinárias que era capaz de idealizar e compor, deixando transparecer por meio de seu trabalho árduo que nem todos os deuses do Olimpo desfrutavam de sombra e água fresca.
Fato é que o mito do deus imperfeito, tendo em mente que Hefesto era manco em decorrência da queda do Monte, subjugado a ferreiro dos demais deuses do Olimpo, foi cultuado nos centros manufatureiros e industriais de Atenas e de outros redutos da Grécia. Verdade ou mera mitologia fantasiosa, é inquestionável que o mito de Hefesto elucida de forma exemplar os vínculos do trabalho com o sagrado, com a dignidade humana e com a conformação das relações sociais e econômicas próprias ao mundo da vida, apontando para a relevância do trabalho enquanto elemento de transformação positiva do planeta e daqueles que o executam e que em igual medida se beneficiam dessa atividade.
A questão mitológica faz ainda mais sentido quando se retoma uma das versões do relato fantástico de Hefesto a qual narra que Prometeu roubou da forja desse deus o fogo com o qual presenteou os humanos. E todos nós sabemos da importância desse imprescindível instrumento de transformação social que acelerou o progresso da cultura humana por intermédio do conhecimento capaz de manipulá-lo para que coisas sejam modificadas e outras criadas. Então, Hefesto – o deus coxo e claudicante – vem bem a calhar com a perspectiva da criatividade própria aos humanos que visa tanto a produção quanto o aperfeiçoamento do próprio mundo e dos objetos que o conformam, modificando em similar proporção a qualidade de vida dos humanos em seu meio ambiente.
Donde ser uma verdade que o trabalho figura como uma condição indispensável ao aperfeiçoamento do ser e do orbe, por permitir o desenvolvimento de potencialidades e elevação da consciência ética e moral, dado ser uma ação que convida ao pensar suas consequências e aplicabilidade. É ele uma ferramenta essencial na estruturação também das relações sociais, forjadas na partilha coletiva e para a satisfação social e pessoal. Logo, o trabalho, hábil em desenvolver potencialidades e redirecionar a natureza em seu proveito, apresenta-se como atividade dignificante e condição privilegiada para a construção e desenvolvimento da identidade e das relações próprias ao humano em seu meio social.
O trabalho sendo uma ação que tudo manipula diz da capacidade humana de criação de camadas que se somam à natureza primordial. Como lembra Brandão (2021) ao rememorar a obra do filósofo tchecobrasileiro Vilém Flusser, a mão-mente do humano não deixa intactas as coisas existentes a priori (vorhanden) e nem as disponíveis a posteriori (zuhanden), fazendo com que a cultura e o lixo sejam reabsorvidos como se fossem camadas de natureza. Essa asserção aponta como o labor é próprio ao Homo sapiens que não abandona as coisas informadas. Muito ao contrário, ele as apreende “agitando-as até que se esgote a informação que contém” (FLUSSER, 2007). A partir dessa percepção é possível afirmar que o labor é inerente à natureza humana e sua transformação em trabalho é igualmente uma peculiaridade e prioridade do humano sem a qual não se move positivamente nem o mundo nem a si mesmo.