A pandemia provocada pelo SARS-CoV-2, vírus que origina a doença COVID-19, vem causando danos humanos, econômicos e sociais sem precedentes. Por isso, é uma condição particular de estresse que impacta nossas mentes, desorganiza as economias e aumenta o risco de desenvolvimento de transtornos mentais.
Ainda que a síndrome respiratória aguda seja sua principal característica, outros órgãos, como o cérebro, também podem ser afetados, de forma direta ou indireta. A COVID-19 nos coloca face ao desamparo humano fundamental, na medida em que, pela invisibilidade do vírus, nos sentimos sem qualquer defesa psíquica capaz de nos proteger.
Quais as consequências que podem advir? O que fazer?
– A incerteza com o futuro
O médico Jair de Jesus Mari, doutor em Epidemiologia Psiquiátrica pela Universidade de Londres, professor titular e chefe do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) destaca que a morte é um tema recorrente no cinema e na literatura. “Não tem jeito: a gente sempre perde para morte”.
Ele lembra que, quando a epidemia surgiu, os governos e sistemas de saúde estavam totalmente despreparados. “Uma molécula microscópica, um RNA conseguiu dominar o mundo, dado o fato de haver infectantes assintomáticos e pelo intenso tráfego internacional”, aponta.
E assim vem ocorrendo esta mudança brutal na vida da população mundial:
– perda de liberdade,
– preocupação com as perdas econômicas,
– sentimentos de raiva, tédio, solidão e desamparo.
Além disso, de acordo com Mari, o Brasil está sujeito a uma crise de liderança política, que prejudica as ações a serem tomadas e restringe as possibilidades de se demonstrar indignação. O isolamento traz muitos problemas também.
– o convívio diário e contínuo entre as pessoas fez aumentar a agressão e a violência entre familiares;
– é grande o impacto emocional causado pela impossibilidade de se promover rituais funerários;
– os jovens que estão iniciando uma faculdade ou uma carreira estão sofrendo com as incertezas futuras;
– e a desigualdade social causa uma devastação em populações mais vulneráveis, que vivem em condições sanitárias precárias.
“Essa situação provoca medo, relativo ao perigo iminente de contágio, e ansiedade, que é a antecipação dos riscos. A reação ao estresse difere de pessoa para pessoa”, observa Mari. Ele explicou que os indivíduos com baixa ansiedade minimizam o risco de contágio, mantendo um otimismo irreal. Aqueles com alto nível de ansiedade demonstram seu estado por meio de demandas desnecessárias por exames, por estoque de produtos e podem apresentar um quadro de depressão. “Algumas pessoas, portanto, vão se adaptar melhor do que outras à situação”.
– A certeza da infecção
As pessoas contaminadas, mesmo as com formas leves da COVID-19, podem ter estados febris, com distúrbios do sono e percepção de muita fadiga, falta de ar e dores no corpo. Esse mal estar generalizado, associado ao necessário distanciamento das famílias dos doentes, também pode provocar medo, desesperança e desespero, especialmente em idosos.
“As pessoas com transtorno mental e dependência química, especialmente, ficam muito abaladas pelas medidas físicas de distanciamento. Têm que ser monitorados, medicados e restringidos no acesso à mídia, que pode provocar impactos fortes”, explica o médico.
Os mais afetados, porém, são os profissionais de saúde que estão na linha de frente, trabalhando sob alto nível de exigência física e emocional, sem equipamento adequado de segurança. Mari ressalta que este grupo está manifestando síndrome de burnout e outros transtornos mentais e precisam ser acolhidos pelas instituições.
“O pior da pandemia se dará na saúde mental, porque há um alto índice de fatores estressantes como desemprego, divórcios, suicídios. É uma epidemia paralela, que envolve um aumento de estresse pós-traumático, luto prolongado, depressão, transtornos de ansiedade e de pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, abuso de álcool e de drogas”, alerta.
– Conhecer mais para temer menos
A médica Fernanda Tovar Moll, presidente do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), fez estágio de pós-doutorado em neuroimagem e neuroimunologia no National Institutes of Health (NIH), foi professora adjunta do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi eleita membro afiliado da ABC para o período 2016-2020.
Para ela, a pandemia de COVID-19 pode gerar consequências neurológicas e psiquiátricas, agudas ou de longo prazo, ainda desconhecidas. “No Brasil, temos a vantagem de o vírus ter passado antes por outros países e já haver conhecimento construído, mas precisamos entender suas adaptações ao Brasil e contextualizar as ações, dentro da nossa realidade”, observa.
Ela ainda destaca o que nos faz temer a pandemia:
– as incertezas epidemiológicas,
– alta demanda por leitos de isolamento e UTIs,
– a exposição dos profissionais de saúde,
– a necessidade de testagem com inteligência.
Moll explica que a ciência vem dando respostas muito rápidas, completamente multidisciplinar, como o desenvolvimento de testes diagnósticos em menos de três semanas, o sequenciamento genômico completo do vírus SARS-CoV-2, a publicação da estrutura atômica da proteína spike, um alvo promissor para vacina, a identificação do receptor de entrada de célula ACE2 e o rápido progresso no teste clínico de medicamentos e vacinas em pacientes. “Mesmo assim, ainda precisamos de mais ciência fundamental e clínica”, aponta Moll, ressaltando que espera que o valor da ciência, evidenciado de forma intensa nesse período, seja reconhecido e mantido na pós-pandemia.
Sobre a COVID-19, a ponta do iceberg foi caracterizá-la como uma doença pulmonar. “Mas já se sabe que ela envolve uma cascata inflamatória que acomete outros órgãos e sistemas, direta e indiretamente”, ressalta a pesquisadora.
O acometimento do sistema nervoso central, tanto de uma forma aguda como de médio e longo prazo, pode provocar traumatologias tanto psiquiátricas como neurológicas. A médica relata evidências de lesões vasculares no sistema nervoso central, que atingem também os pacientes jovens, causando AVCs e outras respostas inflamatórias. Segundo ela, já é sabido que os neurônios podem ser infectados, “mas ainda temos mais perguntas do que respostas. Estamos estudando a fase aguda da doença, pesquisando as características clínicas, cognitivas, de neuroimagem e biomarcadores moleculares para a infecção por SARS-CoV2 no sistema nervoso central. Vamos acompanhar esses pacientes para mapear esses impactos em longo prazo”.
A médica lembra, ainda, de algumas lacunas no conhecimento sobre a doença da pandemia existente. O impacto da doença em crianças e grávidas expostas ao novo coronavírus, por exemplo, não foi suficientemente estudado. Ela desenvolve pesquisas sobre o tema em colaboração com pesquisadores do Rio e de São Paulo, e ainda não há indícios de alterações do neurodesenvolvimento fetal tão graves quanto os vistos no caso da zika. “Mas pode haver alterações mais sutis, que só sejam perceptíveis mais tarde”, alerta.
Para reduzir o impacto do isolamento social e do burnout dos profissionais de saúde, outra pesquisa do Instituto D’Or está sendo conduzida, com a Universidade de Stanford. Está sendo avaliada a eficácia de intervenções psicológicas autoadministradas, via tecnologia digital, na redução de ansiedade, estados depressivos e na melhoria do bem-estar no contexto da pandemia da COVID-19. Uma parceria entre pesquisadores e a plataforma Dados do Bem coleta dados sobre ansiedade e depressão através de aplicativo para estudo na população em geral.
“Estamos num momento de mais dúvidas do que certezas. Mas, como disse Marie Curie, precisamos conhecer mais para temer menos. Que essa experiência influencie futuras políticas públicas de saúde, para estarmos mais preparados diante de possíveis outras pandemias que venhamos a enfrentar”, conclui a cientista.
Com informações da Academia Brasileira de Ciências